Por 23 minutos, Vasco e São Caetano conseguiram sepultar a imagem de que a Copa João Havelange foi um fracasso completo, em todos os sentidos.
Estádio cheio, jogo emocionante. O volante Claudecir comandando um inacreditavelmente abusado time do ABC paulista que veio da Segunda Divisão, diante do assustado, mas igualmente motivado, time de estrelas do Vasco.
Bola na trave de Hélton, Romário sai machucado. Emoções dignas de uma emocionante Final.
Até que... Bem, vocês sabem o que aconteceu.
Uma briga na Força Jovem (uns criticando e outros elogiando Romário, que deixava o campo por um túnel em frenteà torcida organizada), o tumulto, o alambrado rompido e as pessoas, esmagadas, despencando no gramado.
Mais de 200 feridos, muitas fraturas, três em estado grave. Uma tragédia. A torcida literalmente veio abaixo, e com ela a última esperança de um desfecho decente para um torneio errado desde o começo.
Mas os cartolas do futebol brasileiro não se abalaram com o sofrimento desses torcedores.
Enquanto estes eram levados de maca para as ambulâncias e helicópteros do Corpo de Bombeiros, os dirigentes de Vasco, São Caetano, da federação estadual do Rio e do Clube dos 13 discutiam o prosseguimento do jogo.
Sem alambrado, sem segurança, sem clima.
Os jogadores, meros fantoches, aguardavam tudo quietos.
No cenário, que se tornou tragicômico, reinava o deputado federal Eurico Miranda, que assume este mês a presidência do Vasco. Um sujeito que se considera acima da lei em "seu" território, São Januário.
Depois de limpar o gramado pessoalmente, empapado de suor, ele proclamou: "Vamos recomeçar o jogo". E todos obedeceram.
O comando da polícia era a favor: o cancelamento do jogo traria consequências imprevisíveis em relação ao comportamento da massa.
Instantes depois, o coronel Paulo Gomes, comandante do Corpo de Bombeiros, que havia acatado as ordens de Eurico, comunicava constrangido que o governador Anthony Garotinho telefonou, determinando que a partida fosse encerrada.
"É melhor adiar um jogo do que perder uma vida. Imagine o que faria uma torcida enfurecida caso o São Caetano fizesse um gol", afirmou o governador (que havia oferecido o Maracanã ao Vasco, antes de fechá-lo para reforma).
De fato, ninguém seria qual a reação do povo, fosse dado prosseguimento ao jogo, fosse mandando todo mundo de volta para casa.
"Incompetente, frouxo, imbecil". Esse era Eurico Miranda vituperando contra Garotinho.
"Quando o poder público entra no esporte só se atrapalha". Esse é Eduardo Vianna, o Caixa D'Água, presidente da Federação Estaudal do Rio.
Como se tivessem exemplos a dar.
Já esquecido das centenas de feridos (em respeito aos quais certo comedimento era recomendável), Eurico ordenou que seus jogadores, inclusive Romário, voltassem ao gramado, surrupiassem a taça na beira do campo e dessem a volta olímpica. "Vai Romário!", ordenou.
E o baixinho, manquitolando, foi. Eurico já havia mandado também que começasse o foguetório. Com o estádio praticamente vazio, os vascaínos deram meia volta olímpica e, envergonhados, se retiraram. "Eurico, Eurico!", gritavam os remanescentes.
"O Vasco é o legítimo campeão. Tem todos os méritos. Como o 0 a 0 era nosso e o jogo acabou, nada mais natural que a volta olímpica", disse.
Enquanto isso, a poucos metros, o vice-presidente do São Caetano, Luiz de Paula, tentava entrar no cliima: "Se ele (Eurico) diz que o Vasco é campeão, o São Caetano se contenta com o vice. Vamos comemorar do mesmo jeito".
Patético final, momento do qual os vascaínos certamente não se orgulharão.
Os mais neutros, como Caixa D'Água, ponderavam que o mais sensato seria proclamar os dois times campeões, por falta de datas para um novo jogo.
Enquanto isso, todos procuravam algum bendito representante do Clube dos 13, o responsável pela organização do campeonato pela primeira vez.
Incompetência total. Irresponsabilidade. Descaso.
Mustafá Contursi, presidente do Palmeiras e vice do Clube dos 13, sumiu na multidão.
O pesadelo de São Januário pode servir como verdadeiro livro de regras de como não agir em situação de descontrole de multidões.
Aparentemente, não havia qualquer plano de contingência, nem uma brigada de socorro.
Só meia hora depois do empurra-empurra foram tomadas providências básicas previstas em qualquer manual, como a formação de um cordão de isolamento e a delimitação de uma área para helicópteros de resgate.
Infelizmente, a tragédia poderia, e pode ocorrer, em quase todos os estádios brasileiros, verdadeiras armadilhas para seres humanos.
Os alambrados altíssimos e pontiagudos que impedem invasões de campo são os mesmos que matam, quando os torcedores tentam fugir da debandada.
Na Inglaterra, foram abolidos depois da tragédia de Sheffield, em 1989 (95 mortos, mais de 400 feridos), num jogo entre Liverpool e Nottingham Forest.
Lá, também, todas as arquibancadas têm que ter assentos - torcedores de pé são um enorme fator de risco: difíceis de controlar e sujeitos a corre-corres de consequências imprevisíveis.
Além disso, fica impossível saber ao certo quantas pessoas se encontram no estádio.
É o item número um de qualquer manual de segurança: como assegurar a integridade física dos torcedores quando nem ao menos se sabe quantos estão no estádio?
E certamente havia em São Januário mais que as 33.000 pessoas que esgotaram os ingressos - é duvidoso, aliás, se o estádio do Vasco pode comportar 33.000 pessoas.
PLACAR presenciou, antes do jogo, inúmeras pessoas dando a brasileiríssima, e absurda, carteirada, para entrar sem passar pelas catracas e contribuir para a superlotação.
Nesse caso, de quem é a responsabilidade? Do dono do estádio. E quem se considera o dono de São Januário?
A história do futebol brasileiro não dá nenhum motivo para ter esperança de que o incidente de 30 de dezembro seja o ponto de partida para mudanças, tal como ocorreu na Inglaterra.
De tempos em tempos, casos assim se repetem, e são esquecidos rapidamente.
Quem ainda se lembra do desabamento da arquibancada da Vila Belmiro, que feriu centenas de pessoas num Santos x Corinthians do distante 1964?
Quem foi punido pela queda de dezenas de torcedores (quatro mortos) da arquibancada do Maracanã, no Flamengo x Botafogo decisivo de 1992?
O fim dos alambrados, a proibição de arquibancadas sem assentos nos estádios brasileiros, a obrigatoriedade de brigadas de segurança, com planos de emergência definidos (como a legislação exige para os cinemas) são providências que dependem apenas da vontade de dirigentes e legisladores sérios.
Coisa que a Copa João Havelange 2000, com sua decisão esdrúxula, provou que não temos.
* Publicado na Revista PLACAR, em janeiro de 2001.
Ocorreu há exatos 10 anos. E hoje, como estamos?
Estamos...
Há três anos e meio de uma Copa do Mundo!...
Estamos...
Há três anos e meio de uma Copa do Mundo!...
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